Abraão Kuyper: Sua Contribuição pra Caixa de Ferramentas Teológica
Por Ruan Bessa
Introdução
O teólogo e político holandês Abraão Kuyper (1837- 1920) buscou rearticular o calvinismo para o seu tempo como uma cosmovisão toda-abrangente com intuito de renovar a vida eclesiástica e cultural na Holanda. Ao realizar esta tarefa, Kuyper apropriou-se da tradição teológica aprofundando seu capital conceitual.
Meu objetivo é explorar, super brevemente, as adições de Kuyper pra nossa caixa de ferramentas teológica.
1. Graça Comum
Em suas palestras em Princeton, retomando os reformadores, Kuyper comenta que a graça comum é aquela que Deus estende à toda humanidade,
pela qual Deus, mantendo a vida do mundo, suaviza a maldição que repousa sobre ele, suspende seu processo de corrupção, e assim permite o desenvolvimento de nossa vida sem obstáculos, na qual glorifica-se como Criador.¹
Isto permite Kuyper ressaltar o valor da cultura e das diversas tarefas humanas, apesar do pecado. Não só isso, dada a graça comum, Kuyper encoraja os cristãos a participarem na vida pública e nas diversas instituições modernas, desenvolvendo os potenciais embutidos por Deus na criação.
2. Esferas de Soberania
Kuyper vive e escreve num momento histórico em que o estado, alinhando-se aos princípios e efeitos tardios da Revolução Francesa, se torna uma ameaça totalizante tanto a Igreja quanto as outras esferas culturais. Neste contexto, Kuyper articula a idea de esferas de soberania como um princípio criacional e social.
Kuyper comenta que
a família, os negócios, a ciência, a arte e assim por diante, todas são esferas sociais que não devem sua existência ao Estado, e que não derivam a lei de sua vida da superioridade do Estado, mas obedecem a uma alta autoridade dentro de seu próprio seio; uma autoridade que governa pela graça de Deus, do mesmo modo como faz a soberania do Estado.²
Ao reconhecer que a família, o governo, associações, instruções de ensino, e assim por diante, são esferas dinâmicas e soberanas, respondendo diretamente a autoridade de Deus, Kuyper impõem barreiras a absolutização de uma esfera e seu abuso de poder sobre as outras bem como a apreciação e o desenvolvimento de uma verdadeira pluralidade social.
3. Relação Natureza-Graça
Segundo o filósofo holândes Herman Dooyeweerd (1894–1977), Kuyper talvez tenha sido o primeiro teólogo moderno “a recuperar para a teologia [cristã] a visão bíblica de que a fé é uma função exclusiva da nossa vida interior implantada na natureza humana na criação.”³
Assim, Kuyper rompe com certas vertentes do escolasticismo tanto na versão católica quanto protestante. Se na primeira a graça tende a ser uma adição a natureza, de forma que a fé é um suplemento sobrenatural a razão natural, na segunda, a graça e a natureza tendem a ser articuladas em oposição, não há ponto de contato entre elas.
Como alternativa, Kuyper aponta que fé é uma estrutura criacional que toma uma direção apósta na queda. Entretanto, quando o coração, a raiz religiosa humana é regenerado, a fé é redirecionada para Deus. Em resumo, a graça restaura a natureza. Isto nos leva direto a explorar as duas próximas ferramenta.
4. Antítese Religiosa e Pluralismo Confessional
Na tradição neo-calvinista a religião não é uma “parte” da vida humana, mas um compromisso de caráter não-teórico abarcando a totalidade da vida.
O “coração” é a raiz religiosa humana do qual brotam duas direções e compromissos opostos e irreconciliáveis: um guiado pelo Espírito de Deus e fruto da regeneração e o outro pelo o espírito da apostasia e fruto da queda.
Logo, Kuyper afirma uma antítese de caráter religioso e que, portanto, não adimite síntese, perpassando toda criação. Aplicando esta ideia a ciência, por exemplo, Kuyper afirma:
Portanto, nem a fé nem a ciência, mas dois sistemas científicos ou se vocês preferirem, duas elaborações científicas são opostas uma a outra, cada uma tendo sua própria fé. Nem pode ser dito que é aqui que a ciência que se opõe a teologia, pois temos de tratar com duas formas absolutas de ciência, ambas as quais reivindicam o domínio completo do conhecimento humano, e ambas as quais têm uma sugestão acerca de seu próprio ser supremo como o ponto de partida para sua cosmovisão.⁴
Aqui Kuyper:
- Desfaz falsas dicotomias como fé versus razão, teologia versus ciências, sagrado versus secular, mostrando que tais dicotomias confundem estrutura com direção criacional.
- Mostra que o que está em jogo na esfera pública são compromissos de fé que abrangem a totalidade da vida, e portanto,
- Aponta que o cristão não deve abandonar sua fé ao participar da esfera pública, antecipando tendências pós-seculares atuais.
Sendo assim, Kuyper busca uma verdadeira pluralidade confessional na esfera pública, com todas as suas particularidades, ao invés do seu esvaziamento religioso.
Conclusão
Existem vários artigos e alguns livros disponíveis em português sobre o pensamento de Kuyper.⁵ Por ora, espera-se que este breve texto seja uma forma de explorar algumas das ferramentas que Kuyper agrega ao nosso tool-kit teológico.
Notas
[1] Abraão Kuyper, Calvinismo (São Paulo: Cultura Cristã 2002), 26.
[2] Abraão Kuyper, Calvinismo (São Paulo: Cultura Cristã 2002), 73.
[3] Herman Dooyerweerd, No Crepúsculo do Pensamento: Estudos sobre a Pretensa Autonomia da Razão (São Paulo: Hagnos, 2010), 92.
[4] Abraão Kuyper, Calvinismo (São Paulo: Cultura Cristã 2002), 107.
[5] Ver Santos, Nilson Moutinho dos. “Abraham Kuyper: Um modelo de Transformação Integral.” Em Cosmovisão Cristã e Transformação: Espiritualidade, Razão e Ordem Social, organizado por Cláudio Antônio Cardoso Leite, Guilherme Vilela Ribeiro de Carvalho e Maurício José Silva Cunha (Viçosa: Ultimato, 2006), 81–122. Ver também Ramlow, Rodomar Ricardo. “Neocalvinismo Holandês: Autores e Temas.” Em Anuais do Congresso Internacional da Faculdade EST 1 (2012): 1701–1716. E o site Associação Kuyper para Estudos Transdisciplinares.
Sobre o Autor
Ruan Bessa é membro da Igreja de Cristo (PCA) e doutora em Filosofia pelo Calvin Theological Seminary em Grand Rapids, Michigan.