Entrevista em Política e Teologia: Oliver O’Donovan

Ruan Bessa
18 min readOct 17, 2021

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Tradução: Ruan Bessa

Esta entrevista foi publicada originalmente em inglês na Interviews in Politics and Theology #5 (Entrevistas em Política e Teologia no. 5) no blog da Society for the Advancement of Ecclesial Theology (Sociedade para o Avanço da Teologia Escleiástica) em 29 de Outubro de 2010. [1] A entrevista foi conduzida por Jason Hood que caridosamente me permitiu repostá-la em português.

[1] A SAET é a atual Center for Pastor Theologians (Centro para Pastores Teólogos).

Entrevistado

Oliver O’Donovan é reconhecido internacionalmente por sua contribuição em teologia moral e política. O’Donovan é membro da Academia Britânica, da Sociedade Real de Edinburgh, e professor emérito de Ética Cristã e Teologia Prática na Universidade de Edinburgh (2006–2013). O’Donovan também lecionou no Wycliffe Hall (1972–77), na Universidade de Toronto (1977–1982) e na Universidade de Oxford (1982–2006). Suas obras incluem Ressurreição e Ordem Moral, O Desejo das Nações, e a trilogia Ética como Teologia.

JH: Para aqueles que não estão familiarizados com seu trabalho, você pode descrever sua contribuição à questão de como o cristão, enquanto indivíduo, e a Igreja se relacionam com o Estado?

OOD: Não posso afirmar ter feito uma contribuição pessoal à discussão desta questão, mas ter tentado relembrar as contribuições que foram feitas na tradição cristã e ter sugerido que elas podem iluminar a nossa situação. Sobre a distinção entre o cristão e a Igreja, faço algumas observações abaixo, que não irei antecipar. E o estado? O importante a se compreender é que este é uma construção moderna, e não totalmente evidente, uma vez que existem conceitos de estado conflitantes na tradição política anglófona e a comum à Europa continental. O que a Escritura e a tradição cristã tem ensinado é a importância da atividade de governar, uma função humana servindo a uma necessidade humana, que assumiu diversas formas históricas das quais as estruturas do nosso estado moderno são apenas uma, e que garante uma ordem de civilidade e vizinhança. Elas têm falado do caráter preparatório desta função na história, sua significância enquanto um prenúncio da comunidade da raça humana ordenada, governada e redimida sob Deus e seu Cristo. Elas têm falado de seu caráter provisório, preservando a sociedade da violência e da auto-destruição até que as questões finais da adoração e da obediência a Deus cheguem ao seu ponto decisivo. E elas têm falado de seu caráter potencialmente idólatra como um foco de orgulho e rebelião humana. É importante perceber que esta pretensão idólatra não é monopólio dos agentes imediatos do governo, “o Estado” como nós o descrevemos; é uma tentação que permeia toda a esfera da sociedade politicamente ordenada.

JH: Richard Mouw e Carl F. H. Henry tem sugerido que o papel da Igreja não é co-término com a responsabilidade dos crentes enquanto indivíduos. Você concorda ou discorda?

OOD: Quais crentes? Aqueles vocacionados para participar ativamente em organizações políticas, a ser candidato nas eleições, e assim por diante? Certamente, a Igreja como um todo não possui responsabilidade corporativa pela maneira como aqueles cumprem suas vocações assim como não tem pela maneira como professores ensinam ou cirurgiões fazem incisões. Isso não significa que a Igreja não tenha interesse nas vocações de seus membros, especialmente onde questões morais surgem nelas. A Igreja compromete-se a dar suporte aos seus membros em suas vocações com apoio pastoral, e dar conselhos morais que possam ser relevantes para suas tarefas; no entanto, a vocação é deles, não da Igreja. Mas a Igreja não é responsável diretamente pela forma como esta vocação é exercida. Mas tenho receio de uma sugestão (se há tal intenção) de que todos os crentes, enquanto indivíduos, possuem responsabilidades políticas que a Igreja como tal não pode compartilhar. Exista a votação, é claro, que os arranjos constitucionais de um governo democrático atribuem exclusivamente a indivíduos e não a corporações — embora seja perfeitamente imaginável um governo no qual aqueles que ocupam cargos políticos sejam eleitos por corporações, incluindo a igreja, de modo que esta distinção não é uma questão de princípio teológico. A Igreja pode ter opiniões políticas e discuti-las, como podem os indivíduos; e a Igreja deve obedecer à lei — onde é legítima — assim como devem os indivíduos. A Igreja são cristãos abordando e cumprindo suas tarefas juntos em adoração comum e suporte mútuo; cristãos são o Corpo de Cristo distribuído na vida de seus membros. Qualquer distinção além dessa, penso eu, teria traços de uma definição institucional da Igreja muito insulada à vida católica do Corpo de Cristo e, talvez, muito clerical. Talvez isto seja indicativo de que os teólogos mencionados aqui são ambos da tradição reformada; minha resposta é, talvez, uma resposta caracteristicamente anglicana.

JH: Por gentileza, identifique para nossos leitores dois pensadores ou conceitos políticos influentes aos quais você costuma responder (talvez um positivo, um negativo)?

OOD: Pensadores sérios raramente podem ser rejeitados in toto, pois mesmo quando equivocados, eles possuem algo de valor a nos ensinar, enquanto pensadores superficiais não merecem atenção. Portanto, peço licença da tarefa de aduzir um exemplo negativo! Sobre as influências positivas eu poderia falar sem parar. Tive minha primeira introdução ao pensamento político cristão através do ensino do eticista americano Paul Ramsey, cujo trabalho sobre a moralidade da guerra permanece, para mim, um marco. A partir dele encontrei meu caminho de volta aos pensadores dos séculos dezesseis e dezessete, que foi um período importante do pensamento político cristão, e entre estes prezo especialmente o advogado holandês Hugo Grócio. Um milênio antes, Agostinho, é claro, acerca disso como em muito mais, levantou as questões de formas que a tradição ocidental às vezes esqueceu mas nunca foi capaz de escapar. Minha esposa e eu passamos cinco anos coletando textos cristãos sobre política desde o início até meados do século dezessete, e publicamos num livro intitulado From Irenaeus to Grotius (De Irineu à Grócio). Nosso interesse não foi antiquário. Seus autores, acreditamos, poderiam renovar o serviço político cristão contemporâneo.

Também tenho relutância em nomear um conceito político ao qual respondo de forma positiva ou negativa. É muito fácil reduzir o conceito à palavra, e pôr palavras e jargões da moda em circulação não é algo que qualquer pensador possa contemplar com satisfação. A essência do conceito sempre reside no raciocínio que ele gera. No entanto, tenho escrito um bocado sobre “julgamento,” e me engajado na controvérsia se o conteúdo cristão desta noção é adequadamente capturado e expresso na linguagem contemporânea de “direitos.”

JH: Como você resumiria as responsabilidades políticas do americano comum de banco de Igreja, isto é, alguém com direito a voto, mas pouco capital político e pouco ou nenhum capital econômico para ação política?

OOD: Os deveres políticos essenciais que devemos aos nossos vizinhos são os de conviver pacificamente sob a lei e dar apoio adequado às instituições do governo que cumprem a lei. É muito pouco glamoroso e muito necessário. A essa base essencial, uma política democrática acrescentou a responsabilidade específica de votar nas eleições. Cumprir bem esta tarefa democrática é bastante difícil. Significa ouvir atentamente aos debates políticos e peneirar o verdadeiro do falso de maneira auto-questionadora, ciente das influências sutis que o preconceito tem sobre nós, bem como sobre os outros. Significa estar aberto à persuasão, dispostos a mudarmos nosso pensamento. Significa alcançar uma noção clara da diferença entre o que podemos e devemos decidir e o que não podemos e não devemos tentar decidir. Devo mencionar, talvez, que o teólogo político medieval John Wyclif afirmou no início de sua obra maciça “On Lordship” (Sobre o Senhorio) que qualquer discussão sobre relações políticas deve começar com 1 Coríntios 13, onde tudo que é essencial se encontraria.

O “americano comum de banco de Igreja” parece ouvir, não excepcionalmente (ou assim nos aparenta, ao prestarmos atenção do outro lado do Atlântico) que tem responsabilidades políticas muito maiores do que estas: fazer com que o Evangelho seja ouvido na vida pública, trazer o Reino de Deus, criar um mundo melhor, e assim por diante. Algumas dessas tarefas são de fato tarefas da Igreja, que todos os cristãos compartilham, mas não distintamente políticas. Algumas são políticas, mas não tanto tarefas da Igreja quanto promessas da obra do Espírito de Deus, pelas quais devemos orar e esperar — enquanto cumprimos nossa missão e realizamos o trabalho que chega às nossas mãos — com humildade e sem pretensões pomposas. Não podemos estar alertas o suficiente ao fato de que o âmbito da política é habitado por principados e potestades que demandariam nossa adoração no lugar de Cristo.

Existe, é claro, algo como uma vocação específica para servir na política. Mas a pergunta não foi sobre isto. De fato, nenhuma das perguntas foram sobre isso. E isso, talvez, seja uma das coisas que mais impressionam o observador europeu sobre a maneira como os cristãos americanos pensam sobre política: o político “profissional,” embora sempre presente no pano de fundo, nunca é assunto de discussão. Existe, às vezes nos perguntamos, uma condição de negação geral nos EUA sobre a profissionalização da política moderna?

JH: Como Romanos 13 nos ajuda a entender os limites postos sobre a igreja e/ou o crente, enquanto indivíduo, em nosso envolvimento com questões políticas?

OOD: Sempre fico impressionado com a parcimônia e nitidez de foco da descrição de “autoridade” em Romanos 13, na qual o papel do governo é formado para focar totalmente no julgamento. Nada é dito sobre identidade política, sobre território, e sobre comunidade política, temas significantes e dominantes no discurso político antigo assim como no nosso. Mesmo o conceito de poder está apenas indiretamente presente por trás da noção de autoridade. Existem vários comentaristas, é claro, que são ligeiros em retirar o véu da reticência Paulina e fornecer aquilo que supõem Paulo pretendia dizer ou sugerir sobre todos esses tópicos. Mas não costumo ser persuadido por eles! Estou demasiadamente fascinado pelas próprias palavras e pelo que afirmam e não afirmam. Portanto, o primeiro limite que detecto em Romanos 13 não é um limite sobre a igreja e/ou o crente enquanto indivíduo, mas um limite sobre a própria autoridade, que é melhor concebido como um foco que define sua tarefa.

E o limite que isso impõe sobre o resto de nós — não apenas à igreja e aos cristãos, mas a todos os membros da sociedade, é estar “sujeito” (sim, observe o termo que Paulo usa! Percebo que Americanos são propensos a se angustiar com isso!) as operações desta manutenção ordenada e legítima da justiça, e mantê-las alegremente com nossos impostos. Ordem não é um tipo de escravidão. É uma forma de ser livre, mas uma forma que exige que nos adaptemos conscientemente a ela.

Dentro de certa tradição cristã ocidental, esta sujeição tornou-se amplamente despersonalizada e uma questão de obedecer às leis. Há enormes benefícios nisso, o principal é que as razões das leis podem ser compreendidas, e a obediência pode ser inteligente e cuidadosa, ao invés de irrefletida e servil. Mas também há problemas, não apenas com o que a instituição do direito veio a se tornar na modernidade tardia, a facilidade com que as leis são feitas e desfeitas, desafiadas e postas de lado. Espero que os cristãos que tiverem meditado nas implicações de Romanos 13 apoiem o Estado de direito, mas também espero que compreendam a diferença entre legalidade profunda e juricidade superficial. A sujeição à lei deve ser ao propósito e à intenção da lei, e a recusa consciente, caso este caso infeliz ocorra, deve ser feita porque é o único caminho que nos resta de oferecer aquele suporte crítico que o princípio da lei exige de nós.

JH: Como livros como Deuteronômio e Provérbios nos ajudam a entender a perspectiva de Deus sobre a política? O fato de compartilharem percepções políticas e éticas com outras culturas do Antigo Oriente (ou criticarem essas culturas e seus sistemas políticos) influencia sua visão da relevância desses livros?

OOD: Kierkegaard argumentou notoriamnte que São Paulo não tinha autoridade na igreja por ser o pensador mais profundo ou original — ou por ser o melhor fazedor de tendas! — mas porque que era o apóstolo de Cristo. De forma similar, Deuteronômio e Provérbios exigem nossa atenção, não por serem altamente originais e distintos de seu contexto no Oriente Próximo, mas por serem a voz do antigo Israel, o povo eleito por meio do qual o Espírito Santo falou ao mundo.

Permita me concentrar em Deuteronômio. Este livro também é lei — e para entender o que o Espírito Santo nos diz por meio dele, devemos entender o que é a lei, como é feita, como se relaciona com a sociedade a qual ela serve, e assim por diante. A lei é um artefato político e não temos que procurar por política nela — pois a lei é a política em si mesma. Mas além disso, Deuteronômio é um ato de consolidação e publicação legislativa; seu próprio auto-comentário, que é muito elaborado, nos fala de sua ambição em fazer de Israel uma sociedade que vive sob a lei. Para aprender com Deuteronômio, temos que compreender o que ele pode nos revelar sobre a sociedade a qual se endereçava, seus problemas e necessidades. Só se usarmos nossa imaginação histórica dessa forma podemos perceber muito daquilo que Deuteronômio espera alcançar.

Podemos entender a perspectiva de Deus sobre a política a partir disso? A perspectiva de Deus sobre a política do antigo Israel, certamente. Mas entender isso é estar disposto a se afastar da nossa demanda urgente por algo “político” no sentido moderno. Deuteronômio é político do começo ao fim, mas seu cenário histórico não se encaixa em nossas idéias sobre como o político deveria ser. Tradições de comentários sem pé nem cabeça sobre o caráter “ideal” da lei da dívida em Dt. 15 ou sobre o “caráter anti-monárquico” da lei do rei em Dt. 17, por exemplo, ilustram como é difícil para os leitores interpretarem o texto como eles o encontram ao invés de tentar extrair lições modernas do texto. Então, a questão que nos resta é: somos capazes de ser instruídos por Deus a partir de um projeto político que pertence essencialmente ao mundo antigo e suas condições?

JH: Alguns teólogos políticos observam que Daniel modela simultaneamente serviço, crítica e uma mensagem de julgamento divino. Todos três devem ser implementados pelos crentes? Estas são posturas que sempre devemos exibir ou são mais apropriadas em certos momentos do que em outros?

OOD: Me sinto desconfortável com as distinções que esta observação implica — sugerindo que serviço, crítica e um senso de julgamento divino são posturas bastante diferentes que talvez podem ser combinadas ou talvez representadas separadamente.

Me sinto desconfortável, em primeiro lugar, com a ideia de uma crítica política cristã que seja algo diferente da mensagem de julgamento divino. Temos a autoridade ou habilidade de enquadrar a crítica política numa base puramente imanente e secular? Posso abordar um tirano e lhe dizer que matar seus oponentes é, em última análise, uma maneira ineficiente de realizar seus mandos? Ou dizer a grandes corporações que o cuidado com o bem-estar dos funcionários é lucrativo? E posteriormente, acrescentar algo sobre o julgamento de Deus como um adendo? Qualquer advertência que possa ter em meus lábios, devo ter aprendido ouvindo a palavra de Deus pronunciada contra pecadores. Não há outra posição a ocupar.

Me sinto incomodado, em segundo lugar, com a ideia de um “serviço” que não tivesse uma perspectiva crítica imbuída nele. Criticismo significa avaliação cuidadosa e não simples oposição. A oposição é um acidente que pode sobrevir ao criticismo mas não é o cerne da questão. Para servir a pessoa deve ser capaz de avaliar como alguém pode ser útil; a pessoa deve saber a diferença entre o verdadeiro serviço e a mera aquiescência.

Permita-me tentar reformular o que acho que esses teólogos podem discernir nas narrativas do papel Daniel na Babilônia. O caminho da ação política deve ser descoberto no ponto onde o reconhecimento e a afirmação do bem político que Deus fará por meio do ato de governar é totalmente temperado pelo reconhecimento dos perigos morais que sobrevêm a todo exercício humano de poder. O caminho da ação política é sempre estreito, sempre sujeito a ser removido, num instante, pela estupidez e crueldade humana, sempre a ser recebido de Deus novamente e em novos termos.

JH: Se um jovem plantador de igreja lhe disser: “No meu contexto social e cultural preciso evitar tópicos políticos. Isso me permite abordar o evangelho sem qualquer bagagem e tem ajudado nossa igreja a criar uma comunidade de diversas perspectivas centrada em Cristo e sua obra. Entretanto, estou fazendo a coisa certa? Devo ser mais ousado?” Como você responderia? Quais passagens você usaria como recurso para orientar o pensamento dele(a)?

OOD: Pregadores não devem, penso eu, constantemente pregar sobre tópicos políticos. Enquanto estudante numa universidade americana durante a presidência conturbada de Richard Nixon, me recordo de um capelão universitário que repetidamente usava o púlpito para ataques pessoais ao presidente. Não sei dizer qual efeito isso teve sobre a congregação como um todo; em mim, apenas criou uma disposição (injustificada, no fim das contas) de conceder o benefício da dúvida ao presidente. Também instigou em mim uma desconfiança intensa à pregação política como tal, e pelos primeiros dez anos do meu ministério não a empreendi sequer uma vez. No entanto, quando me encontrei numa posição responsável por ensinar o pensamento político cristão julguei que não era possível fazer o tipo de separação entre a sala de aula e o púlpito na qual isso implicava e deveria estar preparado para às vezes aventurar-me além. Olhando em retrospectiva para último quarto de século, me surpreendo quão frequentemente fiz referências políticas, às vezes apenas de relance e alusivas, mais raramente no centro de um sermão. Às vezes tenho feito bem, às vezes mal. Acho que aprendi o que fazer e o que não fazer. Para começar, aqui vão três coisas que você não deve fazer:

(i) Discernimento político não é um dom do Espírito prometido a um ministro ordenado no momento da imposição de mãos. É mais do que provável que uma congregação terá alguns que estejam melhores informados e possuam um julgamento melhor do que de seu clero. É ridículo para um ministro assumir o papel de analista fazendo pronunciamentos sobre o que realmente está acontecendo como um jornalista com uma fonte interna. O que o pregador pode fazer é ajudar em uma avaliação cristã de tais fatos como este são geralmente conhecidos.

(ii) Nem toda onda de entusiasmo político merece a atenção da Igreja em sua liturgia. Julgar quando as questões políticas merecem comentários proféticos requer uma cabeça fria e um senso teológico de prioridades. A adoração que os principados e potestades buscam exigir da humanidade é uma espécie de excitação febril. A primeira ordem do dia da Igreja é recusar-lhes esta adoração. Existem muitas ocasiões — e certamente uma grande eleição é uma delas — quando a crítica política mais aguda que se possa imaginar é falar sobre alguma outra coisa.

(iii) O pregador que espera dizer algo em nome de Cristo sobre a política deve ter domínio de alguns conceitos básicos do pensamento político cristão. Poucas intervenções cristãs no debate político exibem qualquer tipo de sofisticação conceitual. Elas soam ingênuas — não no sentido de serem muito idealista mas simplesmente de usar palavras sem apreciar seu significado. Cada termo político carrega consigo uma carga complexa: “direitos”, “democracia”, “liberdade”, “igualdade”, “estado”, “lei” e assim por diante. Um erro elementar, como usar o termo “democrático” no sentido de “justo,” mostra um nível de incompetência que desqualifica o locutor como um guia para outros. Nenhum pregador pode introduzir tais ideias de forma eficaz sem um senso básico de suas relações entre si e com o Evangelho: como a liberdade civil se relaciona com a liberdade evangélica? Como os direitos humanos se relacionam com a justiça de Deus? Não se contribui com nada se a Igreja meramente ecoa os chavões atuais.

Com essas advertências em mente, como podemos pregar sobre a política? O púlpito só pode ser corretamente usado para abordar as próprias preocupações da Igreja. Essas preocupações são a verdade do Evangelho e tudo o que se segue desta para a ação cristã. A justificativa para pregar sobre política é exatamente a mesma que para pregar sobre a família ou sobre dinheiro ou sobre qualquer assunto secular: ele auxilia os cristãos a fazer com que uma mente evangélica exerça influência sobre suas responsabilidades. A deliberação política é uma responsabilidade dos membros da Igreja na medida em que participam de uma sociedade política. Mas a forma como alguém fala será determinada pelo que está em vista, que é auxiliar deliberação cristã autêntica. O pregador não deve prosseguir como se fosse um político, tentando fazer com que certa decisão seja tomada usando todos os argumentos a seu favor, bons ou ruins, que possam apelar a alguém: “A medida que o governo apresentou é exigida pela simples justiça, é altamente vantajosa economicamente, e quem se opõe a ela está de mãos dadas com o extremismo de direita,” etc, etc. O ponto é que o argumento deve ser um argumento cristão que comenda a si mesmo a qualquer consciência cristã.

É menos importante que aqueles que o ouvem concordem com suas conclusões do que respondam positivamente aos princípios a partir dos quais você raciocina. Quando me dirijo a questões políticas quase sempre adoto uma forma exegética de estrutura de sermão, sigo meu texto e o argumento que surge a partir dele até que este aponte irresistivelmente para algum princípio teológico-político. Daí, da maneira mais leve possível, dou concretude ao princípio mostrando como é relevante ao problema público em questão. Normalmente não me preocupo em apontar minha própria opinião; esta será evidente o suficiente a partir do argumento. Se alguém discordar de mim, espero que essa pessoa tenha sido ajudada a articular uma resposta mais autenticamente cristã, que leve a sério as questões de princípio que levantei. Todos precisam ter uma noção mais clara do que é inegociável para a consciência cristã e o que, em contraste, é apenas uma questão de ênfases ou interpretação divergente de uma dada situação.

Não lhe incomodo com o conselho inútil de que você não deve ser partidário. Isso afirma muito e pouco ao mesmo tempo. A noção de que a deliberação política é basicamente sobre as reivindicações rivais de partidos concorrentes é uma noção que a Igreja deve fazer tudo que seja possível para desafiar. Deliberação política diz respeito a compreender verdadeiramente a nossa situação. Toda a ênfase deve recair sobre a articulação das verdades em questão. Se não há questões de verdade, se tudo se resume a qual partido irá (digamos) administrar a economia com mais habilidade, então não há necessidade, para começo de conversa, para que os ministros da Igreja tratem da questão. Mas se há uma questão de verdade, a questão deve ser encarada diretamente. A verdade exige parcialidade; não há imparcialidade entre as reivindicações da verdade e do erro. Nosso sucesso irá depender do isolamento da questão da verdade que exige nossa parcialidade, e não confundi-la com questões sobre as quais opiniões divergentes são possíveis. Para realizar isso, devemos evitar prejulgar quem é amigo do erro, quem é amigo da verdade. Não devemos assumir que a verdade é propriedade privilegiada de um partido. A verdade é libertação para todos, e exige arrependimento de todos. Deve ser recomendada como estanodo disponível simultaneamente aos pobres e aos cobradores de impostos. Sua demanda não deve ser endereçada a um lado só — como se a um grupo coubesse todo o arrependimento, enquanto o outro assiste— e decide quando aquele se arrependeu o suficiente!

A autoridade do profeta deriva de um discernimento da preocupação que o Espírito coloca sobre a Igreja naquele momento. Não há razão para supor que essa preocupação será frequentemente política, no sentido mais restrito desta palavra. (Mais amplamente, sempre será polítca, uma vez que a própria vida da igreja é a realidade política fundamental). Mas não há razão para se alarmar se, em qualquer ocasião, a preocupação da Igreja se abra para uma perspectiva crítica sobre os eventos políticos seculares. “Convencer do pecado, da justiça e do juízo” é a obra do Espírito Santo (João 16:8), que às vezes, certamente, deve assumir a forma de tomar uma posição em relação a males tais como aborto, dissuasão nuclear, desemprego, desigualdades entre norte-sul e assim por diante. Seríamos pregadores do Evangelho menos do que fiéis se decidíssemos nunca nos aventurar em tal terreno. Mas para realizarmos isso de maneira útil temos que assumir o risco da controvérsia. Teremos de pouca utilidade para o Espírito Santo se pouparmos nossas denúncias aos males sobre os quais podemos ter certeza de que haverá pouca diferença de opinião entre os nossos ouvintes. A controvérsia pode ser saudável ou prejudicial. Não será saudável se anunciarmos nossas conclusões e declarar: “É pegar ou largar!” A controvérsia será saudável se liderarmos a Igreja na tarefa de deliberação cristã a partir dos princípios básicos, ajudando assim aqueles que diferem a encontrar o fundamento cristão sobre o qual estão e construir a unidade da Igreja no Evangelho. Dessa forma, o julgamento do Espírito se mostra autêntico, traçando a linha entre o Evangelho e o desespero, entre a fé e a descrença, a obediência e a rebelião, e indicando o caminho para a confissão de Cristo no centro de cada nova situação.

JH: Qual é o melhor artigo ou ensaio que um jovem pastor poderia ler sobre política, interpretação política da Escritura ou teologia política? O melhor livro?

OOD: Qualquer pessoa que pensa em se safar lendo um único artigo ou livro, deveria reconsiderar. A política é uma discussão. “Beba muito, ou não experimente da fonte Pieriana!” Sobre por onde começar, isso depende de onde a pessoa se encontra. Ninguém começa do nada. Mas, correndo o risco de insistir muito no passado, deixe-me sugerir: onde quer que você esteja, de onde quer você veio, a próxima leitura poderia, muito proveitosamente, ser o décimo nono livro da Cidade de Deus de Agostinho.

Entrevistador

Jason Hood, Ph.D, é pastor da Igreja North Shore Fellowship (PCA) em Chattanooga, TN. Jason é o autor do livro Imitating God in Christ: Recapturing a Biblical Pattern, IVP Academic, 2013. (Imitando a Deus em Cristo: Recapturando o Padrão Bíblico).

Tradutor

Ruan Bessa é membro da Grace Hill (PCA), e doutora em Teologia Moral pelo Calvin Theological Seminary em Grand Rapids, Michigan.

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Ruan Bessa

“Fim? Não, a jornada não acaba aqui… A cortina cinza deste mundo se enrola e tudo se transforma em vidro prata. E aí você vê…” Gandalf